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Anticlímax

De repente, tudo acontecia mais devagar. Uma sensação gélida percorria-lhe o estômago. Até engolir a saliva que se acumulava insistentemente no fundo da boca requeria um tanto de trabalho. A pistola ainda apontava para ele; mais alguns segundos e tudo chegaria ao fim. Precisava falar, se mexer, implorar, qualquer coisa, mas não conseguia reunir forças.

“Passa a carteira.” A frase foi repetida, agora mais pausadamente, como se não tivesse sido clara da primeira vez. Não precisava daquela repetição, estava tudo muito bem explicado, mesmo antes de qualquer palavra ter sido pronunciada. “E o celular também.”

Todo aquela dia havia sido uma merda. Sabia que não devia estar ali. Não naquele horário. Mas não foi uma questão de escolha. Era voltar pra casa no meio da noite ou não voltar nunca mais para o trabalho. Na verdade, o ano inteiro foi uma merda. Quiçá a vida toda. Sempre, tudo que podia dar errado, dava. Ali estava a arma apontada pra ele para provar. Começou a sentir uma raiva que não conseguia controlar. Ela falou por si. Tapou a boca com as mãos para não deixar a palavra sair, mas já era tarde demais. A palavra já ecoava naquela rua escura e vazia.

“Não.”

Antes mesmo que pudesse voltar a sentir o pânico correr em suas veias, o homem de capuz agiu.

Simplesmente virou as costas e foi-se andando na mesma direção em que veio. Por algum motivo, aquilo pareceu pior que uma bala no meio da testa. Então, a raiva continuou:

“É isso?”, falou vagarosamente e com perceptível ressentimento.

“Cala a boca.”, disse o homem sem sequer olhar em sua direção.

“É só isso?”, gritou com toda a força que seus pulmões permitiam, enquanto olhava pra cima. Não sabia mais com quem estava gritando: o homem de capuz ou alguma força superior.

“É só isso. E pare de gritar, as pessoas estão dormindo.”

“Você não vai me matar?”, não conseguia abaixar o volume da voz.  Tudo aquilo era ultrajante. O assalto, o dia, o ano, quiçá a vida toda.

“Você quer morrer?”, o homem do capuz voltava-se para ele com as mãos no bolso.

Não conseguiu dizer que sim ou que não. Só tinha um desejo, mas não sabia até onde iria para vê-lo realizado.

“Eu não sei… só quero… que as coisas mudem. Mas isso não interessa.”

Começou a andar em direção ao homem, que não esboçava reação alguma. Então, fez a pergunta que estava lhe perturbando desde que não houve disparo algum.

“Qual é o problema? Por acaso eu não sou importante o suficiente?”, voltou a gritar enquanto se aproximava.

“Quem sabe.”

O tom apático na voz do criminoso parecia responder a pergunta. A raiva parecia querer rasgar-lhe o peito e pular ela mesma no pescoço daquele homem. Agiu automaticamente. Deu um tapa na testa do homem, arrancando-lhe o capuz da cabeça. Frações de segundo depois, tomou um soco tão forte no estômago, que caiu de joelhos. Quando conseguiu recobrar a respiração e abrir os olhos, viu o cano da pistola. Fechou os olhos novamente, dominado pelo medo.

“Não!”

Não ouviu barulho. Não sentiu dor. Não conseguia respirar. Preparou-se para abraçar a escuridão, entrar no túnel de luz, ver a vida passando rapidamente em seus pensamentos, o que quer que seja que acontece nessas horas. Nada.

Abriu os olhos e viu o homem de capuz se afastando. Pôs a mão na testa. Continuava intacta. Sentiu as calças molhadas, reflexo involuntário do medo absoluto. Não conseguiu reagir. Apenas ficou parado ali, enquanto ouvia pela última vez a mais apática das vozes.

“Agora você sabe.”

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