A minhoca de ferro movia-se a uma velocidade vertiginosa. Dela foi poupado o trabalho de escavar os próprios túneis; talvez por isso tenha se especializado em correr por eles o mais rápido possível, como se quisesse fugir da vergonha de ter o trabalho difícil já realizado por outros. Pessoas entravam e saíam da minhoca a todo instante, e abarrotavam-se dentro dela. Uma população cansada, cujo objetivo mais importante parecia ser o de sentar nas cadeiras, como se disso dependesse suas próprias vidas.
Duas minhocas depois, saiu dos túneis para não voltar mais. Encontrava-se no que parecia ser um formigueiro humano. Uma procissão interminável, na qual todos passavam apressados, carregando cargas consigo para levar não se sabe onde. Finalmente sentou-se e abriu um livro. Havia se esquecido que esse objeto aparentemente ordinário, composto por nada além de papel, palavras e ocasionais figuras conferia a seu usuário o poder de quebrar a maldição do tempo-que-não-passa, responsável por trazer tanta gente até os limites da sanidade.
O relógio não bateu quinze para as duas, porque haviam emudecido com o passar dos tempos. Os relógios falantes limitavam-se às torres de igreja na maioria dos casos. De qualquer maneira, aquela era a hora. Levantou-se para se sentar novamente um lance de escadas abaixo. Passados alguns minutos, a paisagem a seu redor magicamente começou a se mover. Passava por ele sem cerimônias, enquanto uma música de qualidade no mínimo questionável tocava ao fundo.
Estava prestes a abrir novamente o livro quando a música cessou e foi surpreendido por gritos de aleluia. Ouviu ali a mítica história do homem que não tinha onde cair morto, mas que agora era dono de uma companhia de milhões que aparentemente veio do nada aleluia glória a Deus. Cantigas de adoração eram entoadas desafinadamente, e a elas se sucediam histórias ainda mais in-críveis e canções ainda mais desafinadas. Resolveu não questionar as histórias ou a fé ou o uso da palavra como espetáculo. Apenas se perguntou quando foi que Deus havia se tornado adepto da poluição sonora. Caiu no sono antes de encontrar uma resposta.
Acordou a poucos minutos de seu destino e decidiu observar a paisagem que passava com tanta pressa. Mais tarde reencontrou a família e o resto do dia passou bem depressa, talvez ainda por influência do livro, que definitivamente era dos poderosos. Logo não restava mais nada a fazer senão dormir mais uma vez.
Às sete da manhã, amaldiçoou a brancura do quarto. Gostava da luz, mas não nesse horário. Se dependesse dele, todos os quartos seriam negros como o óleo que move o mundo e faz metade das coisas funcionar, para que qualquer luz que se atrevesse a entrar em um quarto às sete da manhã fosse punida com a morte. A outra metade das coisas (inclusive os globinhos de vidro no teto que simulavam pequenos sóis iluminados e aquecidos) tirava a energia da parede que, por sua vez, tirava da água (ou do vento, ou do fogo, ou mesmo do já citado óleo).
Para aplicar o golpe de misericórdia na letargia das sete da manhã, apareceu a ideia. Em muito pouco tempo havia crescido a ponto de se tornar insuportável na cabeça. Então desistiu do sono, abriu as janelas do quarto branco e pediu perdão antecipadamente pela ousadia que estava prestes a cometer. Correu atrás de um caderno e uma caneta, mas se contentou com uma folha sem linhas e um lápis de ponta boa para contar a história das impressionantes minhocas de ferro que fugiam da própria vergonha.
(Doppelgänger : Gabriel García Márquez – Cem Anos de Solidão)
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